Habitar livremente o espaço público é um direito adquirido com o tempo no seio das sociedades democráticas, e que, em particular na Europa, se assumia como um dado adquirido. O abalo que a crise pandémica trouxe à livre circulação de pessoas entre países e os vários períodos de confinamento obrigatórios, mas necessários para conter a propagação do vírus, alertam-nos para o privilégio que todos temos responsabilidade em manter e cuidar: o livre pensamento no espaço público, seja ele de cariz artístico ou político… se é que é possível dissociá-los.
A recente guerra na europa adensa a discussão. Na Ucrânia, mulheres e crianças lançam-se numa fuga apressada procurando abrigo noutros países, os homens, obrigados a ficar e a enfrentar o invasor. As ruas deixaram de ser um lugar seguro para circular e são agora o palco de bombardeamentos constantes e confrontos corpo a corpo, numa guerra tão absurda como todas as outras. Na Rússia, manifestantes antiguerra são presos por se insurgirem contra a narrativa do governo. O mesmo país que há dez anos (2012), prendeu, julgou e enviou para uma prisão na Sibéria um coletivo punk rock feminista – Pussy Riot – por cantar na rua. Repetimos: por cantar na rua.
Esta não é, de resto, como sabemos, uma realidade exclusiva da atual guerra na europa. A liberdade de circulação no espaço público é vedada todos os dias a pessoas um pouco por todo o mundo, seja por via da guerra, pelas políticas autoritárias de regimes opressores, ou pela insegurança que transforma as ruas num lugar que não se recomenda.
Por tudo isto, pensar a programação de um festival em espaço público assume uma responsabilidade acrescida. O privilégio de podermos coabitar livremente nas ruas e de assim partilharmos ideias e imaginarmos coletivamente utopias sociais, políticas e artísticas, deve fazer-nos pensar sobre as práticas e discursos a ter em conta quando pensamos a programação das nossas cidades, e, neste caso em particular, um festival que tem como palco privilegiado o espaço público. Foi a partir deste princípio de grande responsabilidade que desenvolvemos uma programação que este ano coloca a tónica na errância, através de obras artísticas que farão vaguear o público pelo perímetro urbano das cidades, mas também, entre elas, por caminhos, atalhos e vielas que ligam as cidades de Barcelos, Braga, Famalicão e Guimarães. A companhia francesa Collectif Protocole, através do seu projeto, Kilometer 97,1, partirá numa viagem performativa de quatro dias, ligando os territórios numa longa performance que acontecerá simultaneamente no espaço urbano das cidades, mas também nos caminhos que as ligam com uma série de intervenções ao longo de todo o dia, convocando o encontro inusitado deste coletivo de malabaristas franceses com os transeuntes das urbes, vilas e aldeias dos quatro concelhos que acolhem o Festival.
A par desta grande deriva, convocamos para esta oitava edição do Vaudeville Rendez-Vous, a comédia absurda dos palhaços. Essas personagens que comentam com humor o nosso quotidiano e nos fazem rir da nossa própria tragédia, observando o mundo com uma ironia mordaz, colocando em perspetiva a nossa organização social e as nossas relações de poder. Será assim com o espetáculo MDR – mort de riure, da companhia catalã Los Galindos, onde três palhaços enfrentam um conflito inesperado: um espetador morreu a rir na sessão anterior. Será necessário apurar a responsabilidade e o palhaço culpado por esse crime. Um espetáculo que questiona a arbitrariedade da justiça, através de um humor inteligente e cáustico.
Na edição deste ano damos continuidade ao compromisso do Festival no apoio à criação, fundamental para a progressiva estruturação e sustentabilidade na área do circo em Portugal, e para o qual o Vaudeville Rendez-Vous tem prestado um forte contributo desde o seu início. Coproduzimos as criações dos artistas Alan Sencades, com o seu Do ferro à ferrugem; e a mais recente criação da companhia Oliveira&Bachtler – Cir-k. De destacar ainda nas produções nacionais os espetáculos, Silêncio do Corpo, da companhia Erva Daninha e dirigido pelo artista João Paulo Santos; o espetáculo Vinil da companhia Quando sais à rua, e a nova criação do palhaço português Rui Paixão – Kinski.
Ao longo de quatro dias faremos um total de 29 récitas dos 11 espetáculos programados, dos quais – 5 estreias nacionais e 2 coproduções. À semelhança da edição anterior, o Festival arranca com quatro oficinas de criação dirigidas a públicos específicos de cada cidade e estende-se ao longo da programação, havendo ainda lugar para uma conferência dirigida a estudantes, profissionais, ou simplesmente curiosos, das artes performativas, orientada pela companhia Los Galindos, acerca do seu processo criativo.
Esta será uma edição para voltarmos a habitar e a criar livremente no espaço público. Para sermos surpreendidos pelo olhar diferente que os outros têm do território que habitamos quotidianamente. Desconfinemos também o olhar.
Bruno Martins e Cláudia Berkeley
direção e programação do
Festival Internacional Vaudeville Rendez-Vous
Ficha Artística
Direção Artística Bruno Martins
Programação e Direção Geral Bruno Martins e Cláudia Berkeley
Direção de Produção Eduardo Maltez e Marta Lima
Direção Técnica Valter Alves
Programa de Mediação Vera Santos
Assistente de Produção Raquel Passos
Comunicação Anaïs Proença
Design Gráfico Rui Verde
Vídeo Os Fredericos
Fotografia Susana Chicó
Assessoria de Imprensa Central de Informação
Organização Teatro da Didascália
Coprodução Teatro da Didascália, Município de Barcelos, Município de Braga, Município de Guimarães e Município de Vila Nova de Famalicão