Odeio iogurtes – Miguel Branco | Artista em Residência

2022

June 15, 2022

fAUNA


June 21, 2022

fAUNA


Nunca mais consegui aproximar-me daquela cómoda da mesma maneira. Ainda hoje, quando vou a casa dos meus pais, evito colocar o telemóvel a carregar junto àquela tomada, debaixo da dita cómoda. Recordo os gritos, o choro dos quatro, “não te admito que fales assim à tua mãe, ouviste? Eu não te admito, João”, disse o meu pai enquanto lhe pressionava o pescoço para debaixo da cómoda. Não sei que idade tinha, mas julgo que passei a ter muitos mais anos nesse dia. Nunca mais voltei a ver o meu pai assim. Nunca mais voltei a sentir-me tão assustado. E nunca consegui suprimir a violência entre a minha mãe e o meu irmão. O filho mais novo é sempre o privilegiado, aquele a quem deixam pão no caminho. Um dia gostava de resolver o meu irmão. Um dia gostava de tirar a dor à minha mãe.  

 

Biografia:

Miguel Branco é natural de Almada, onde começou a observar o quotidiano e a ser gente. Em criança, entre discos de Zeca Afonso e poesia lida em voz alta nas festas de aniversário e nos encontros de amigos, foi-se politizando, ganhando gosto pelas metáforas. Tornou-se jornalista de cultura — jornal iTime Out LisboaObservador — e um certo fascínio pelo teatro nasceu. Talvez possa dizer-se obsessão. Pela via do jornalismo e dos bastidores dos palcos conheceu actores, encenadores, produtores, cenógrafos e imaginou-se no meio deles. Cruzou-se com a Mascarenhas-Martins e tornou-se dramaturgo, estreando-se com Até Parece (2019) — sobre o conceito de crise nas suas várias acepções — e Há dois anos que eu não como pargo (2020) — três amigos que partilham casa, desalentos e a condição de precariedade numa realidade suburbana —, peças que a companhia do Montijo levou a palco, com encenação de Levi Martins. Actualmente, deixou o jornalismo e faz comunicação, edições e assessoria de imprensa na Mascarenhas-Martins, com quem continua a colaborar artisticamente. aqui p’ra dentro, uma exposição performativa em torno da sua escrita — com espectáculos no seu interior cujos textos foram escritos por si: Lama ressequida com marcas de carro; Um pano em Vancouver; O golfinho André — e onde dividiu a direcção artística com Levi Martins e Pedro Nunes, é o seu projecto mais recente, tendo estado patente na Galeria Municipal do Montijo de Outubro a Novembro de 2021. Quatro peças para outras formas de vida é o seu primeiro livro, editado pela Urutau. É pós-graduado em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

FICHA ARTÍSTICA:

Miguel Branco – autor e criador

Pedro Nunes – pesquisa e apoio à criação

João Jacinto – intérprete e apoio à criação